quarta-feira, 16 de julho de 2014

Currículo do Estado de São Paulo: Metodologia do Ensino de Sociologia



Não é necessário expor novamente os dados cotidianamente publicados para se afirmar a existência de um hiato entre o que é trabalhado nas licenciaturas de ciências sociais e a realidade escolar do ensino médio. Certamente se poderia arrolar como desculpa o fato de a sociologia ter ficado durante longos anos excluída do currículo enquanto disciplina obrigatória, ressalva para o fato de haver o mesmo distanciamento que ocorre com outras disciplinas consagradas, como geografia e história, e é característica geral das licenciaturas. Entretanto, não se pode desconsiderar que a luta pela institucionalização da sociologia não foi adequadamente acompanhada da discussão séria sobre currículo e metodologias de ensino.
Mesmo agora em que a sociologia é disciplina por lei, se encontra muito poucas referências ao ensino nos congressos, palestras e debates acadêmicos. Via de regra, embora parcela significativa dos formados acabe indo lecionar no ensino médio, as atenções na academia estão todas voltadas para o ensino superior. O resultado é a formação de professores sem clareza quanto ao currículo e, principalmente, metodologia de ensino a serem aplicados. Essa constatação dá validade a que se atente para o currículo de sociologia implantado no Estado de São Paulo no contexto da reforma educacional em curso, bem como à metodologia aplicada. O estudo do que tem sido feito no âmbito escolar é importante não só como pesquisa em si sobre os elementos e significados do currículo mas como ponto de referência para o desenvolvimento de propostas e um pensar a respeito do trabalho realizado nas licenciaturas.

Materiais:
Em São Paulo, o currículo de sociologia se apresenta em três dimensões: ao aluno é ofertado o caderno do aluno, o professor recebe o caderno do professor  e há atividades de formação continuada desenvolvidas pelo programa Rede Aprende com a Rede, que consiste em cursos online em que os intelectuais responsáveis pela formulação do currículo surgem em videoaulas disponíveis aos professores. O material do aluno constitui suporte para as atividades em sala, o do professor é um guia de ensino que contém o conteúdo a ser ministrado e as orientações sobre como trabalhar em sala, as videoaulas surgem como atividades formativas que fazem uma discussão e revisão de parte do currículo.

Objetivo do Currículo:
O  currículo foi desenvolvido por Heloísa de Sousa Martins e equipe, tendo como objetivo construir uma consciência política e cívica, uma vez que se entende que há uma falta de consciência sobre as questões sociais por falta de uma orientação sociológica. Não tem interesse, portanto, em formar sociólogos, mas construir um aluno do ensino médio capaz de um outro olhar sobre a realidade que o rodeia.
Indica-se que a sociologia ajuda na participação racional e informada dos cidadãos, contribuindo para uma formação ética, autonomia intelectual, e um pensamento crítico. A sociologia ajudaria a superar o senso comum, que tudo sabe e explica, conhecimento imediatista, acrítico, com prenoções e preconceitos. Ela busca construir um conhecimento orientado pelo distanciamento da observação e da análise.
Há a preocupação com o desenvolvimento da imaginação sociológica, segundo a conceituação de Wright Mills, que entende essa como a capacidade de pensar a sociedade para se comprender o próprio percurso biográfico. A sociologia ajudaria o jovem entender a sua própria vida dentro do contexto social maior, compreender a sua própria experiência enquanto membro da sociedade, localizar-se a si e ao outro no contexto social - entender seu mundo.
O currículo tem preocupação com a construção das identidades. Surge como oportunidade de autoconhecimento para o estudante. Procura mostrar aos alunos que a identidade é sempre relacional, marcada pela diferença. Ele é ele porque é diferente do outro, e só é possível compreender a si mesmo compreendendo o outro.

Temas e Conteúdo:
            Se há algo que não se pode afirmar sobre o currículo de sociologia é que ele tenha sido feito com preguiça. Ao contrário, diferentemente do currículo de muitas unidades escolares e de Secretarias de Educação de outros Estados que consistem na aplicação pura e simples de livros com conteúdos de sociologia ou meras indicações de temas, o currículo do Estado de São Paulo parte, ele próprio, de um prévio conhecimento sociológico a respeito da clientela a que se destina e dos temas pertinentes a tais.
            O currículo leva em conta que o ensino se destina a uma juventude afetada por várias questões e procura se estruturar por temas que focam na juventude. Vemos arroladas a questão da violência, do desemprego, das identidades e culturas juvenis, do simbolismo que permeia a vida social, da estratificação, da comunicação e cultura, do trabalho, da migração, da cidadania e formas de participação, das estruturas governamentais que os afetam, da desumanização e coisificação, da esperança e do sonho. É claramente um currículo voltado para o jovem, formulado em cima de três grandes eixos: cultura e socialização, diferença e desigualdade, cidadania.
Assim, o primeiro ano abarca o surgimento e função da sociologia, a desnaturalização e estranhamento da realidade, o homem como ser social, a socialização em várias etapadas da vida, as diferenças entre sociedades, o simbólico e a cultura, as desigualdades de gênero, classe social, geração e desigualdades decorrentes de preconceito de cor. O segundo ano contém diversidade social brasileira nacional e regional, a questão do estrangeiro, migrações, aculturação e assimilação, cultura e cultura de massa, o trabalho como mediação, divisão social, sexual e etária do trabalho, aspectos do trabalho no mundo industrial, exploração, emprego e desemprego, mudanças no mundo do trabalho, violências simbólicas, sexuais, físicas, psicológicas, escolares, domésticas e as razões para a violência. O terceiro ano é explicitamente de política, contendo  cidadania – origem, desenvolvimento, tipos de direito, constituição de 1988, lutas e expansão da cidadania, grupos especiais de direito: crianças, idosos, mulheres; movimentos sociais e formas de participação popular na história brasileira, movimentos populares urbanos, novos movimentos sociais (feminista, ecológico, GLBT, negro), teoria do Estado, sistemas de governo, organização política do Estado brasileiro, eleições e partidos políticos, desumanização e coisificação do outro, reprodução da violência e da desigualdade, papel social transformador da esperança e do sonho.
            Vê-se a presença da sociologia, antropologia e da política que são permeadas por conteúdos históricos e geográficos além de referências estéticas. Embora o terceiro ano seja todo ele de política, o primeiro e o segundo mesclam sociologia e antropologia. Os três eixos, cultura e socialização, diferença e desigualdade, cidadania, também estão presentes nos três anos, embora haja uma predominância do tema cidadania no terceiro.

Princípios Orientadores:
O currículo se estrutura em três grandes princípios atitudinais:
            -Estranhamento.
            -Desnaturalização.
            -Construção do olhar sociológico.
O estranhamento consiste na metodologia de se buscar conhecer a realidade, os fatos sociais, como se fosse um observador externo, olhando de fora. A ideia é buscar fazer com que o aluno consiga se afastar para observar de longe os fatos sociais, vendo-os como estranhos, num exemplo, estranhar o fato de todos torcerem para a seleção brasileria de futebol em nosso território. A desnaturalização consiste na metodologia  de não tomar como natural a realidade, entender que todos os fatos sociais requerem uma explicação racional. Busca dispensar as justificações óbvias e cotidianas que naturalizam os fatos, pois isso é requisito de novas abordagens e novas explicações fundadas na razão, deve-se explicar todos os fatos sociais. No mesmo exemplo, explicar a razão de todos torcerem para a seleção brasileira questionando se sempre foi assim. O olhar sociológico parte dos dois princípios expostos e busca interrogar a realidade social, questionar as relações entre pessoas, superar o senso comum, que é o pensamento de quem tem preguiça de pensar, buscando enredar os fatos numa rede mais ampla que é a das causalidades sociais. No exemplo, buscar os condicionantes sociais que criaram e mantém a existência de uma massiva torcida para um time de futebol, a seleção brasileira. O olhar sociológico atenta ainda para o fato de como nosso olhar é construído e determinado socialmente, o que implica ponderar nosso próprios valores como condição de bem observar os fatos sociais.

Metodologia de Ensino:
            Se baseia num tripé: alfabetização conceitual, absorção e discussão de temas,  pesquisa. Por exemplo, ao trabalharar a questão dos fluxos migratórios, se desenvolve o aprendizado sobre o conceito de estrangeiro para Simmel, se discute o tema em si baseado em dados empíricos que trazem conhecimento sobre a realidade das migrações e se propôe pesquisa ao aluno. O currículo contém um processo contínuo de aprendizado sobre como a sociologia aborda diferencialmente dados temas, o que gera uma vocabulário próprio e foco específico. Em sociologia, trabalho, por exemplo, é diferente de emprego. A esse aprendizado inicial do conceito e do vocabulário sociológico soma-se o conhecimento direto da questão que, por fim, serve de objeto para pesquisas e novas formulações.
            A abordagem é bastante prática, uma vez que o currículo, contrariando o que é hegemônico nas universidades, desviou-se da velha tradição de se ver o ensino de sociologia como mero ensino do pensamento sociológico. Num exemplo, procura-se ensinar ao aluno o Estado tal qual ele existe institucionalmente e não somente as ideias de Estado construídas por Maquiavel, Hobbes ou Rosseau. Uma vez que se pretende compreender quem o aluno é, toma-se o seu mundo como ponto de partida e de chegada, aproxima-se dele para estranhar o mundo com ele, utiliza-se os temas e conceitos da teoria aplicando-os aos problemas que afetam os brasileiros e brasileiros jovens.
Como prática de aula, o ensino aposta no diálogo professor-aluno, e no diálogo com outras disciplinas. Possui, em cada situação de aprendizagem, uma parte inicial de sensibilização onde se procura despertar o alunado para a temática que se irá trabalhar. Deve-se, ainda, usar o conhecimento dos jovens como ponto de partida e desenrolar da atividade. O diálogo com outras disciplinas inclui o uso das ciências sociais, estatística, biologia, história, geografia, filosofia, direito, guardando-se a especificidade de cada área.
O material para trabalho em sala contém:
            - Texto para leitura e análise: sociológicos, literários, poemas, letras de música
            - Pesquisas e dados
            - Indicação de filmes e documentários
            - Gráficos e tabelas
            -Fotografias, charges, símbolos.
            -Questionários e propostas de textos a serem desenvolvidos
            - Propostas de atividades individuais e coletivas

A leitura e análise de textos é a base, dada a preocupação de se aumentar a leitura dos alunos tanto com textos sociológicos, como literários, letras de música e etc. O currículo preocupa-se que o aluno aprenda a entender o que lê, ser capaz de compreender e interpretar o texto, assim como, desenvolver a capacidade argumentativa.
            Aponta que se deve:
            -Perguntar aos alunos o que entendeu do texto, extraindo seu entendimento
            -Fazer o aluno anotar palavras que não conhece
            -Fazer o aluno ler antes da aula
            -Procurar no dicionário
Deve-se, também, fazer o exercício da escrita para que o aluno exponha a compreensão do que foi lido e explicado. Entende que atividades escritas ajudam o aluno a ordenar ideias, construir argumentos com coerência lógica e correção gramatical.
Aponta que deve-se utilizar as pesquisas como recurso para o olhar sociológico, observar a realidade e refletir sobre ela. Os questionários ajudam a refletir sobre as questões e os filmes auxiliam na construção da imaginação sociológica, além de romper o ensino baseado somente na fala.  Os gráficos e as tabelas ajudam a esclarecer os conceitos.
Ao se analisar textos, deve-se focar o título, a fonte do texto, os gráficos e tabelas que existam e esclarecer as siglas. Ao usar mapas, deve-se comparar os dados gerais com os dados setoriais, também pode-se aumentar o levantamento buscando dados sobre a realidade local. Pode-se usar a mídia como referência e enriquecimento da discussão e outros conhecimentos que estejam acessíveis aos alunos.

 Lacunas e Críticas:
             Não abordou crime, aborto, drogas, falta mais textos, mais desenhos, grafite, falta o rap, regionalização, impressão em volumes maiores, curtas-metragem pra trabalho em sala, figuras grandes, livro auxiliar ou textos adicionais, portal educacional para o aluno, provas padrão, exercícios em modelos lúdicos, pensar atividades pedagógicas fora de sala..




           


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